A maior parte das pessoas não lê o jornal "Mirante", de Santarém. Com a devida vénia, recupero a entrevista de José Peseiro à edição desta semana. Entrevista completa (
aqui). Estou sem palavras. Guardarei as minhas impressões para a caixa de comentários... depois da massagem cardíaca de reanimação.
José Peseiro em entrevista depois do regresso das Arábias
Um homem sem medos viciado em futebol
Na primeira entrevista de fundo após o regresso da Arábia, o treinador de futebol José Peseiro fala da experiência das arábias, da passagem pelo Sporting e revela que pelo menos nos próximos três anos não quer treinar em Portugal. Aborda as raízes ribatejanas, confessa o orgulho por ter o seu nome no estádio de Coruche e revela um pouco da sua faceta mais íntima. Diz-se viciado em futebol, admite alguma simpatia pelo Benfica, não gosta de falar de política e garante que não tem nenhum medo em especial.
Foi colega de curso de José Mourinho e teve a melhor nota da turma. Isso faz com que seja melhor que ele?Essa história não é inteiramente verdade. É verdade que fui um dos melhores alunos do meu curso mas o Mourinho não estava no meu ano.
Mas sente de alguma forma o fantasma dessa comparação?Tenho tido uma relação de amizade com o Mourinho, até porque frequentámos o mesmo curso e fomos mantendo contacto, mas nunca deixei transparecer que tinha de ter alguém como referência. Tenho a minha personalidade, a minha experiência pessoal e futebolística e é isso que me define. Não tem cabimento nenhum haver comparações dessas. Os media é que nos promovem como uma coisa deslumbrante que não somos e como umas coisas horríveis que também não somos. Mas como treinador de futebol temos de estar preparados para quando os miúdos nos mandam parar para pedir um autógrafo ou para mandarem pedras.
É verdade que quando estava de saída do Sporting o seu carro foi vandalizado?Não. Foi mais um boato.
Numa entrevista a O MIRANTE em 2002 disse que nenhum treinador é um processo acabado. Mantém essa opinião?Quando eu sentir que já não consigo evoluir na minha actividade tenho de escolher outra e desistir. Se não tiver motivação para ler, para aprender, ou para questionar os meus saberes e o que estou a fazer bem e mal é tempo de me ir embora. Há muita gente que já devia ter feito isso…
E o que lhe falta a si aprender?Quando cheguei ao Sporting tive sempre um discurso um pouco diferente. Falar de futebol e das coisas boas e más da minha equipa. Entendo que só assim podemos evoluir. Infelizmente chego à conclusão que fiz mal, porque tudo o que dizia mal da minha equipa era usado como capa de jornal para pôr em causa a estabilidade da equipa. Infelizmente há muita gente que não consegue perceber que tratando o futebol como se trata está-se só a jogar no curto prazo e nunca se vai evoluir. Eu disse que vinha de Espanha e tinha uma cultura de espectáculo. Ninguém gostou e fui morto porque esta mensagem não passou. Esta imprensa que vive do espectáculo matou o gajo que queria espectáculo. Eu não sou daqueles que diz que o espectáculo é no cinema. O futebol é espectáculo e prefiro ganhar por 5-4 que por 1-0.
Essa má relação impede-o de voltar a ser treinador em Portugal?Não. Eu penso que paguei um pouco por uma luta de poder no Sporting. Mas é uma evidência que as mesmas pessoas que estão no Sporting neste momento não me proporcionaram a tranquilidade que hoje proporcionam a quem lá está.
Como é que sobrevive no futebol sem empresário?Eu não tenho empresário fixo mas tenho vários empresários que me contactam.
Agora quando saiu do Al-Hilal justificou a saída por “falta de condições” e para “não cometer o mesmo erro” que fez no Sporting, em que considera que devia ter saído mais cedo...Exacto. Eu só comecei a segunda época porque apesar de ser benfiquista como as pessoas dizem…
E é ou não?Eu posso ser o que for mas um profissional de futebol não se rege pelo clube que tem ou não. Eu nasci numa família de benfiquistas mas chega uma altura na profissão em que sou inócuo a isso. Não estou a dizer que não me dá satisfação ver o Benfica ganhar mas para mim não é isso que conta. O que eu fiz sempre foi colocar o Sporting à frente dos meus interesses. Sempre. E por isso no final da primeira época disse ao presidente Dias da Cunha que queria sair. Ele pediu-me para não sair e disse que as coisas iam mudar mas infelizmente não mudaram.
Era capaz de voltar ao Sporting?É difícil. Não sei qual é o meu futuro e até estou muito contente por ter treinado o Sporting. Se não tivesse treinado o Sporting não tinha tido 18 convites para treinar quando saí. E continuo a ter. Agora tenho cinco mas se não tivesse treinado o Sporting não tinha nada disto.
Quando vai voltar ao activo?Proximamente. Neste momento tenho um pré-acordo com uma equipa mas depende se aceita ou não as minhas condições. Porque eu fora da Europa só quero fazer um contrato de 5 meses. No final da época já tenho umas coisas alinhavadas para um campeonato europeu.
A passagem pelo Al-Hilal, da Arábia Saudita, foi um desafio na carreira, uma oportunidade de ganhar bom dinheiro…Foi por essas razões e porque precisava de sair de Portugal. Não é que não goste do país, pelo contrário, mas entendi que era melhor sair.
Em Portugal, nesta altura, não lhe servem todos os clubes?Tenho respeito por todos os clubes, não quer dizer que não os treine, mas neste momento o meu objectivo é estar pelo menos três anos fora do país.
Porque é que se veio embora, estando na frente do campeonato?Dois meses depois de chegar ao Al-Hilal tive um convite para o Panathinaikos, que até pagava a indemnização, mas não me deixaram sair. Na altura disse-lhes que não saía mas que tínhamos de mudar várias coisas. Depois tive outro convite de Portugal e também não aceitaram. Voltei a falar com eles e a dizer que não estava contente e sentia que não íamos a lado nenhum porque não havia condições. Disseram-me que ia mudar mas no último jogo que fizemos perdemos o segundo jogo em vinte jogos porque quatro jogadores foram dispensados para ir para a reza para Meca. Foram dispensados outros dois, um para ir cuidar da mãe, outro do sobrinho. Eu não concordei e no dia seguinte disse que não valia a pena continuar.
Foi quase campeão nacional, esteve quase a vencer a Taça Uefa, foi elogiado por todos, mas numa semana perdeu com o Benfica e perdeu a Taça Uefa e todos lhe apontaram o dedo. Como viveu essa semana em que passou de bestial a besta?Esse ambiente que eu tive sempre e que nunca me foi favorável, nunca me proporcionou que eu me sentisse bestial e isso foi bom. Fui sempre uma besta no Sporting. Entre ganhar e perder era sempre uma besta. Nunca tive uma tarja de apoio nas claques. Só tinha Peseiro c….. pede a demissão ou uma coisa dessas.
Mas como é que geria as suas emoções num cenário desses? Sentia-se injustiçado?Tinha de aceitar. É o mundo em que a gente vive e não se consegue mudar. Na altura o Peseiro era culpado de tudo, nesta altura são os jogadores culpados de tudo. Mas eu ser visto como culpado até era bom porque isso libertava os jogadores da pressão. Eu dizia que a minha equipa era a melhor e fui criticado por dezenas de energúmenos que nem percebem que um treinador se não tem dinheiro para fazer uma grande equipa – e o Sporting não tinha – tem de motivar os que tem. E para quem tem dúvidas eu pergunto onde é que está o Douala, o Paíto, o Sá Pinto, o Pinilha, o Niculae, que eram titulares na altura? Alguns até têm dificuldade para arranjar clube, sinal que não eram assim tão bons como isso.
Teve divergências com alguns jogadores. Há quem diga que lidar com os atletas é a sua maior lacuna como treinador. Concorda com essas críticas?Em 14 anos de treinador, com quatro subidas ou cinco nunca tive esse ónus da questão. Isso foi maquiavelicamente preparado por pessoas que queriam que perdêssemos. Havia pessoas que queriam que o Dias da Cunha saísse do Sporting – e eu já apontei os nomes – que no dia a dia a única coisa que faziam era desautorizar a minha liderança.
Como reage a sua família a esta vida de viajante?A primeira coisa que um treinador tem de fazer é preparar a família para isso. Fazer-lhes ver que nem somos astros quando ganhamos nem umas bestas quando perdemos. Agora na Arábia a minha mulher acompanhou-me, os meus dois filhos não.
Como é que eles vivem os seus momentos bons e maus? O primeiro problema quando a gente perde não é satisfazer os sócios é dar um conforto aos filhos porque não percebem quando o pai perde e é “chingado”. Quando se vê uma filha chorar porque quando ganhava eram os do Benfica que chateavam, quando perdia eram os do Sporting, não é fácil. O que temos de fazer é que eles nos vejam como pessoas normais.
PERFIL
Um ex-candidato a autarca que não gosta de falar de políticaA pontualidade parece ser um valor caro a José Peseiro. Antes da hora marcada já o técnico de futebol estava no café Académico, paredes meias com o prédio onde reside no bairro do Sacapeito, em Santarém. O casaco de pele, a camisola preta, e as calças de ganga conferem-lhe um ar informal, que combina com o gel no cabelo. O cachecol ao pescoço combina com o frio que assola a cidade e o país. Pessoa reservada, só se empolga verdadeiramente quando se fala de futebol e, sobretudo, de alguns momentos da sua carreira. Como a sua polémica passagem pelo Sporting, onde dividiu opiniões entre os adeptos leoninos que ainda hoje lhe elogiam o futebol praticado e os que não se esquecem do amargo de boca de nada se ter ganho nessa época.
Já quanto à política e à sua simpatia clubística é mais reservado. Chega mesmo a irritar-se moderadamente perante a nossa insistência sobre se é ou não militante do PCP. Não responde, embora confirme que foi candidato pela CDU em Coruche em eleições autárquicas há muitos anos. “Mas em lugares não elegíveis”. Confessa também que nunca leu “O Capital”, uma espécie de bíblia dos comunistas escrita por Karl Marx. Quanto à simpatia pelo Benfica, comum à sua família, muito a custo lá conseguimos arrancar a confissão: “Não digo que não me dá alguma satisfação o Benfica ganhar”.
Tem quase 47 anos, é mais velho que o seu colega de faculdade José Mourinho, por exemplo, mas não parece. É casado e tem um casal de filhos. Ambos estudam. O filho já se emancipou. José Peseiro descende de uma família de comerciantes. O pai, na sua infância, tinha uma loja. Hoje a família tem um restaurante afamado pelas bandas do Sorraia e não só. Mas o técnico não se mete em grandes cozinhados. Embora desenrasque uns bifes com batas fritas ou uns ovos estrelados se for necessário. Das lides domésticas é que não gosta muito, reconhecendo que a sua ajuda à esposa fica aquém do recomendável.
Foi um puto reguila que gostava de jogar à bola. Mas foi também bom aluno. Licenciou-se pelo Instituto Superior de Educação Física (ISEF), em Lisboa, transformado entretanto em Faculdade de Motricidade Humana. Dali saiu uma fornada de treinadores, o mais emblemático dos quais é José Mourinho. Fez também um mestrado. Viciado confesso em futebol, José Peseiro diz não ter outros vícios ou medos que mereçam menção. Gosta de ver os jogos ao detalhe, mas sem som. Não acompanha a visão com música clássica, como fazia o seu colega Artur Jorge, embora aprecie esse tipo de música.
Tal como também gosta de um bom livro ou de um bom filme. “A Testemunha”, um filme com Harrison Ford da década de 80, é um dos filmes da sua vida. Gosta de tramas bem construídas e onde se possa aprender algo sobre outras civilizações ou comunidades.
(cortesia MSI)