Mãos ao ar

Blogue de discussão desportiva. Qualquer semelhança entre este blogue e uma fonte de informação credível é pura coincidência e não foi minimamente prevista pelos seus autores. Desde já nos penitenciamos se, acidentalmente, relatarmos uma informação com um fundo de verdade. Não era, nem é, nossa intenção.

quinta-feira, junho 26, 2008

Sete vidas


Chegamos a casa de Carlos Queiroz.
Helmut, o enorme pastor-alemão, salta o portão e vem lamber-me a cara. Para evitar mal-entendidos, permitam-me que vos explique que Helmut era um cão e não um daqueles senhores que apascenta cabras, nascido na Baviera.
Dizem que, há muitos anos, Carlos Queiroz chegou a ser humilde. Acredito cegamente. Mas só o conheci na fase em que ele se portava como um lorde inglês, aparentemente envergonhado da piolheira onde tinha de exercer funções. Tudo nele transmitia um incómodo expresso numa pergunta nunca formulada, mas pairando sempre no horizonte: teria o fornecimento de água corrente começado apenas na véspera da sua chegada a Portugal?
Dessa reunião pouco restou de relevante. É verdade que, a dado ponto, o professor retirou as calças, mas eu e o Sancho imaginámos que fosse normal.
[Nós]: Mas, ó professor, tem mesmo de estar em cuecas enquanto falamos?
[Ele]: Sim, sim. Isto usa-se muito no estrangeiro.
[Nós]: Então, está bem. Se é assim que se faz lá fora... Mas, ó professor, tem mesmo de tirar os sapatos e as meias também?
[Ele]: Claro. Isto usa-se muito no estrangeiro.
[Nós]: Hum... Então, está bem.
Até ao dia da minha morte, manterei em segredo o desfecho dessa reunião. Mas sempre vos digo que ou o professor nos aldabrou, ou o estrangeiro é muito diferente daqueles postais que a minha prima me manda de França. *
Da selecção foi corrido sem honra para o Sporting. Em Alvalade, honra lhe seja feita, criou uma das melhores equipas do passado recente do clube. Ganhou uma Taça de Portugal – muito para um clube esfomeado de títulos, pouco para o potencial do conjunto de jogadores colocados à sua disposição. Saiu. Sem oportunidades internas, fez como o Saramago, que se pisgou para Laçarote ou coisa assim, e partiu para o desterro.
Levou na mala a vontade de um dia regressar pela porta grande e, em Manchester, encontrou por fim condições para ganhar qualquer coisa. Ali teve também a premonição que o atormenta: se ficasse tempo suficiente, poderia um dia substituir Alex Ferguson. A natureza das suas funções actuais é motivo de discussão: para alguns… quer-se dizer, para o José Manuel Delgado, ele é o estratega por detrás dos êxitos do Manchester United; para a generalidade da população, ele recolhe os pinos e as bolas no final dos treinos e distribui os coletes amarelos e azuis antes da peladinha.
Como o proverbial hamster pedalando continuamente na roda, Queiroz vive do sonho de um dia suceder a Ferguson. Puro engano. Tal como o hamster nunca terá velocidade para superar a rotação do brinquedo, Queiroz também não conseguirá nunca mostrar que é o melhor candidato para o cargo. Mas nem o hamster, nem o professor, têm noção da limitação.
É por isso que acredito que Queiroz, se for convidado, dirá “não” à selecção. A sua quimera prossegue.
E o técnico dirá a Madail o que disse a Luís Filipe Vieira há algumas semanas:
- Sair agora? Não vê que estou quase a ultrapassar a roda?

[*Recordo aos advogados do professor Queiroz que isto é um blogue ficcional. Evidentemente, como os leitores depreenderam, nós nunca pensámos que o professor nos tivesse aldabrado!]

terça-feira, junho 24, 2008

Problemas de basculação


Num passado não muito longínquo, entretive-me a pesquisar números de utentes femininas da lista telefónica, tratando depois de lhes ligar. À voz inquisitória que ecoava do outro lado da linha de cobre, respondia, com um murmúrio digno do Hannibal Lecter, soprando arrastadamente as mesmas palavras: “Ireeeene, sou o teu escraaaaavo!”
Hoje, com o avanço da ciência médica, os neurologistas estão em condições de assegurar duas verdades fundamentais sobre o cérebro humano. Em primeiro lugar, há cinco lobos essenciais neste órgão: o lobo parietal, o lobo occipital, o lobo temporal, o lobo frontal e o Luís Freitas Lobo. Em segundo lugar, os neurologistas reconhecem também que, ao escutar a expressão arrastada “sou o teu escraaaaavo”, as mulheres, em vez de rejubilarem pela oferta dos meus préstimos, desatam a gritar disparatadamente pela guarda. As histéricas!
Reconheço sem esforço que agi incorrectamente e tive até oportunidade de o dizer ao meu terapeuta, ao polícia que me prendeu, ao senhor juiz e ao senhor da minha cela que insiste em chamar-me número 8. Infelizmente, há gente que não quer perceber que o que dizemos não é necessariamente o que queremos. É esse o tema da intervenção de hoje.
Admitamos como hipótese de trabalho que é possível extrapolar a atitude de algumas selecções do Euro’2008 para o futebol português e para os comportamentos vigentes de alguns clubes. A ser verdade, não haveria selecção tão parecida com o Sporting como a da Holanda. Nestas competições, a Holanda brilha intensamente contra equipas de vão de escada, fazendo crescer água na boca dos adeptos para os testes mais importantes. Protagoniza invariavelmente os melhores momentos da competição e estabelece laços de empatia inesquecíveis com milhares de adeptos, como é exemplo o agora célebre cântico: “Ik ben de enige persoon die het weet omdat ik niet thuis blijf.” (só eu sei porque não fico em casa!” Escusam de protestar porque usei o fidedigno Babel Fish para fazer a tradução). Na altura decisiva, porém, os holandeses falham – uma cruz que me habituei a carregar.
Ao mesmo tempo, se o FC Porto olhasse para o seu reflexo no espelho, seguramente veria nele a imagem da selecção alemã. Não é particularmente brilhante, nem bonita, nem leal, nem bem-cheirosa, nem terá nunca nos seus quadros os jogadores mais entusiasmantes da prova. Mas é na eficácia do seu conjunto, na frieza e determinação das suas peças e no acerto mecânico dos seus homens que se forja uma cultura de vitórias. Como qualquer pessoa que já olhou mais de dois segundos para o Bruno Alves sabe, o FC Porto, e a Alemanha, não são bonitos. Mas ganham. E nem sempre com batota.
Resta o terceiro reflexo. O do Benfica. Não encontro nada mais parecido do que a selecção espanhola. Para quem, como eu, trabalha com espanhóis, é já habitual registar que, no mês que antecede cada competição, os espanhóis incham. Não é metáfora. Incham mesmo de ar, seguros de que o mundo será deles, que a rainha de Espanha é mais bem feita do que a Isabel Figueira, que toda a gente os teme, que coisas como o Iniesta são os melhores médios-ala do planeta ou que o Almodôvar não faz filmes de merda.
No remanso do estágio, os jogadores espanhóis são feras, rosnam assustadoramente e prometem mundo e fundos. Em competição, porém, a pressão acumula-se. As pernas tremem. O estômago ronca com aquilo que os ingleses chamam "dores de borboleta". E os espanhóis, que ganharam o seu único troféu sob o olhar aprovador do general Franco (uma espécie de Salazar, mas com botas de marca), sucumbem, guardando invariavelmente mil-e-uma críticas para árbitros, sistemas, adversários e para o destino.
Como na minha história, ao telefone, os espanhóis, e o Benfica, também são valentões…

quarta-feira, junho 18, 2008

Carlos Martins

Acabo de chegar da ilha do Corvo, nos Açores, onde descobri o valor da polissemia da língua portuguesa. Aparentemente, uma “ministra”, que para o resto do país é uma politica eleita para um governo, ali é o móvel de quarto de cama onde se guarda o penico. Voltarei ao tema mais abaixo.
Suspeito que se uma equipa de neurocirurgiões analisasse ao pormenor o cérebro do Carlos Martins não encontraria nada de especial. Se os lóbulos do bolbo raquidiano são a zona do cérebro especializada em gerir as emoções e a agressividade, os do Carlos terão quatro ou cinco vezes o tamanho normal e, provavelmente, o bolbo já cortou relações com o raquidiano há alguns anos. Tirando isso, porém, a explicação para o desequilíbrio do artista não é morfológica. É ambiental.
O Carlos chegou ao Sporting com o rótulo de craque. À partida, isso não o distinguiria dos vinte ou trinta miúdos que ali chegaram nas mesmas condições durante a década de 1990. Simplesmente, o Carlos foi dado como craque aos 11 anos. Para uns, isso seria um fardo suportável. Para o Carlos, essa responsabilidade tornou-o naquilo que os especialistas chamam um maluquinho irrecuperável.
Talvez se recordem que, pela transferência do Oliveira do Hospital para Alvalade, o Sporting teve de compensar o clube do distrito de Coimbra com um jogo particular realizado pelos seniores de então. Nessa tarde memorável, aquele dez réis de gente deu o pontapé de saída perante a euforia das bancadas, que vitoriaram loucamente o futuro craque da terra.
Ao longo do seu percurso de formação, estimulado pelos contínuos elogios à sua (reconheçamos) ímpar capacidade técnica, o Carlos desenvolveu um forte sentido daquilo a que ele próprio designa por carisma e a que o resto do mundo chama esquizofrenia aguda.
Em função disso, não concebe uma decisão técnica que lhe seja desfavorável. Mastiga demoradamente cada desilusão como se ela escondesse uma marosca inconfessável para o tramar. Interioriza, sem processar, essa frustração e, quando entra em campo, fá-lo com a avidez dos cavalos de corrida, pronto a resolver um jogo nos primeiros três minutos. Aos quinze, está invariavelmente de língua de fora; aos trinta, está esbaforido e de olhos esbugalhados; aos cinquenta, costuma ser expulso por agressão bárbara.
No fundo, necessita de provar à bancada, em cada lance, que merece estar ali e que aquele é o seu lugar. Mesmo que isso implique lançar-se num carrinho louco, a caminho da linha de fundo [vide Sporting-Moreirense], para tentar centrar uma bola impossível e terminar o lance com o ombro deslocado.
Dir-me-ão os senhores que está ali um craque em potência. É o problema da polissemia na língua portuguesa, já expresso no exemplo da ministra: para o Benfica, o Carlos tanto pode de facto vir a ser um craque (jogador de excepção) como um craque (queda abrupta de cotação).
Eu aposto na segunda.