Estava a chover lá fora, que é aliás onde normalmente costuma chover.
O prometido aterrou na terra num dia invulgar de Verão, frio, desagradável, com a chuva a entupir sarjetas e a disseminar pela cidade o cheiro levemente adocicado da couve apodrecida. Logo lhe prometeram que, em não o desejando, não permitiriam que voltasse a chover na cidade. Mas o prometido, magnânime, encolheu os ombros e disse que se sujeitava ao que viesse.
“Que nobreza de homem”, escreveu um no jornal.
“Que espírito tão aberto”, ripostou o outro.
Chegaram os primeiros compromissos mediáticos. Habituado à guerrilha da sua terra de origem, o prometido a todos respondeu com elevação, penteando sempre a melena para as câmaras, como a tia, fadista, lhe ensinara a fazer. No íntimo, estranhava as perguntas pouco acutilantes, ingénuas, pueris, mais próprias de uma sessão de catequese do que de uma conferência de imprensa. Mas respondia, respondia sempre, com um sorriso no rosto e a melena cofiada entre os dedos.
“Que fineza de trato”, escreveu-se no jornal.
“Que experiência revigorante para a nossa terra ouvir um homem com ideias tão claras”, publicou-se noutro.
Para surpresa do próprio, as vitórias apareceram antes das derrotas. Os elogios transformaram-se em salmos. O pateta-mor da terra publicou num dos jornais esta loa: “E pensar que nos debatemos aqui, nos últimos anos, com a necessidade comercial de “pisar o risco”, incensando na 1.ª página vitórias tangenciais e exibições medíocres, do género “Águias voam alto” ou “Aí está o Benfica!”, tantas vezes quando o “alto” era baixo como o Colombo ou o “Benfica” que se exaltava nada tinha do Benfica que conhecíamos e que parece estar agora de volta. Será que já não precisaremos mais, não de mentir, mas de dar à verdade um embrulho de ouro para material de pechisbeque? Em nome de Record, agradeço os bons ofícios de D. Enrique(…).”
Dias mais tarde, acrescentou: “(…) devo reconhecer que passei a torcer mais pelo Glorioso desde que tem este treinador, um homem sereno perante as contrariedades (…) Que me perdoem, mas dá-me a ideia que, quando Cardozo cabeceou para a vitória, estiquei também o pescoço. Não devia, eu sei.”
Dele se escreveu, durante dois meses, que não mais se voltaria na terra a faltar ao respeito aos jornalistas, tamanha era a etiqueta do prometido. Que não mais se culpariam os atletas por falhas de estratégia imputáveis ao treinador. Que nunca, por Deus, nunca se voltaria a colocar nos ombros de um árbitro o ónus de um mau resultado.
Num mundo perfeito, é certo, isso não sucederia. Infelizmente, porém, no espaço de uma semana, o prometido perdeu uma taça no sábado e não deixou os atletas falarem à imprensa; perdeu outra taça na quinta e culpou publicamente a falta de entrega dos jogadores. E, à segunda, que é o dia em que normalmente o Senhor descansa, atirou-se desalmadamente ao árbitro.
Algures, numa esquina de Lisboa, um homem chora copiosamente, usando como lenço a manga do único blazer da família, que partilha com mais três primos.
“Ele era o prometido, ele era o prometido”, balbucia repetidamente.
Volta a chover lá fora, que é, como se sabe, o sítio onde normalmente chove.