Contra-natura
Consideremos esta tartaruga. Em rigor, o texto de hoje não se debruça sobre o bicefalismo, sobretudo porque, até há bem pouco tempo, o autor destas linhas acreditava que os únicos animais bicéfalos eram as lulas que gostavam de homens e mulheres. Mas é com truques baixos destes que eu me governo e faço os leitores avançarem entre parágrafos. Não será muito honesto, não senhor, mas é assim que ganho o dinheiro que põe cigarros na minha mesa…
Intrigam-me os adeptos que, durante as semanas europeias, acodem aos sites noticiosos respeitáveis, e também ao Record Online, para apelar desesperadamente ao patriotismo. Eles são o equivalente aos bons samaritanos do recreio, ensanduichados entre dois sopapos, procurando ingloriamente perceber em que momento começaram, eles próprios, a enfardar. Eles são o senhor voluntarioso que se impulsiona como uma mola cedendo o lugar à velhinha, antes de perceber que toda a carruagem está sentada e o olha com o mesmo semblante superior com que as pessoas com narizes normais observam o Júlio Isidro.
O adepto patriota é como a tartaruga bicéfala (cá está, a referência não foi gratuita). É contra-natura, um erro de programação. A paixão por um clube só faz sentido se ela coexistir na medida exacta do ódio por um clube da mesma grandeza. Amar o Inter sem odiar o AC Milan é uma perda de tempo. Tal como vitoriar o Manchester sem desprezar o Arsenal. Ou amar o Oriental sem odiar o Benfica.
Todos nós temos o nosso trauma juvenil que transportamos penosamente como uma cruz até ao Calvário. Ou talvez só até Alcântara, dependendo do passe social intermodal. O meu resultou de uma experiência escolar no liceu mais próximo do Estádio da Luz. Como é bom de ver, dos 30 meninos da turma, 28 eram do Benfica, eu era do Sporting e o Manelinho entretinha-se a vestir e a despir um Action Man com saiotes e combinações enquanto assobiava músicas dos Wham.
Naturalmente, nos jogos de bola, 28 meninos queriam jogar na posição do Nené, eu queria jogar na posição do Damas e o Manelinho queria jogar na posição de missionário.
Evidentemente, e porque os factos que aqui penosamente descrevo ocorreram em simultâneo com o período a que em Alvalade chamamos a “década da Grande Fome”, as segundas-feiras eram particularmente penosas. Habituei-me por isso a ser do Gotemburgo em 83. Do PSV em 88. Do Milan em 90. Do FC Porto em... enfim... de há 30 anos para cá.
Tenham por isso paciência. Há gestos para mim socialmente impróprios, como esperar que o Benfica ganhe a quem quer que seja, limpar as unhas com um garfo ou comentar num urinol para o parceiro do lado: “Pelo som que escuto, a sua próstata parece adequada e funcional.” Não está na minha natureza, pronto.