Os Merdinhas – Parte 3
Em miúdo, tive uma camisola do Jorge Cadete. Era a número 11, pintalgada com um tom de verde esbatido como uma alface, e trazia estampado o logótipo dos Seguros Bonança. Na minha inocência, eu venerava aquela camisola como o bem mais precioso do mundo.
Ora, o Joca Cadete tinha uma característica que o tornava absolutamente único na I Divisão portuguesa: ele falhava muitos golos nos grandes jogos. E também falhava muitos golos nos pequenos jogos. Com o Joca, os sportinguistas sabiam com que contar: dez golos falhados e, se Deus ajudasse, um golito marcado. Ah, mas que golo seria, senhores! Não propriamente pela jogada ou gesto técnico – o único gesto técnico que o Cadete parecia dominar com à-vontade era a respiração nasal. Mas o Cadete festejava os golos com uma energia contagiante: corria para os fotógrafos, os dois braços levantados, um esgar de gozo estampado no rosto. Clic, clic. As primeiras páginas do dia seguinte transbordavam de Jorge Cadete. O Cadete era, para os jornais desportivos, o mesmo que o José Castelo-Branco é hoje para a imprensa cor de rosa: irresistível.
Os mais novos já não se lembrarão do Joca. Ajudá-los-á saber que ele era uma espécie de Hélder Postiga, mas sem tirar golos de dentro da baliza. O Cadete seria provavelmente o resultado de um possível cruzamento entre o pai do Pauleta e a mãe do Nuno Gomes. Noto, em jeito de parênteses, que o uso da palavra “cruzamento” adquire particular propriedade tratando-se de avançados.
Contra todas as evidências, eu gostava do Joca. O Joca tinha praticamente todos os atributos de uma estrela da bola: tinha uma melena particularmente fotogénica; era casado com uma menina que, fossem outros os tempos, e teria sido capa de uma qualquer FHM (hoje, em contrapartida, a Rita conseguiria apenas ser capa do suplemento “Cargas & Transportes” do jornal “Público”); tinha o melhor carro do parque automóvel do clube; e auferia um dos melhores ordenados. Só não sabia jogar à bola, defeito que, mesmo não sendo impeditivo, aborrecia um bocadinho.
Creio que o segredo do Joca era a sua tremenda disponibilidade para os media. Nunca conheci aliás ninguém mais disponível: o Joca falava sempre. Quando tinha coisas para dizer, mas também quando nada lhe ocorria à atormentada mente. Ficou aliás célebre a sua troca de palavras com o repórter da RTP, depois de um Portugal-5 Escócia-0.
Repórter: Cadete. Marcou dois golos. Gostou mais do golo de cabeça ou do golo que marcou com o pé esquerdo?
Cadete: Sim.
Repórter: Ahem… O público do Estádio da Luz assobiou-o, apesar de hoje representar Portugal e não o Sporting. Sai magoado?
Cadete: Não. Levei uma pancada no pé esquerdo, mas já quase não me dói.
Os jornalistas, claro, gente prática e com os mesmos escrúpulos com que Deus Nosso Senhor agraciou os bichos de conta, colocavam-no nos píncaros. E o Cadete foi ficando pelo Sporting.
Um dia, Carlos Queiroz chegou a Alvalade. É certo que fora Queiroz quem concedera a primeira internacionalização ao avançado do Sporting, mas o antigo seleccionador preferiu sempre o Domingos ao Joca na selecção. Para os mais novos terem noção, o Domingos seria qualquer coisa como o resultado de um cruzamento entre o pai e a mãe do Nuno Gomes.
Cavou-se abruptamente a sepultura do Joca em Alvalade. A contragosto, ele partiu para Brescia. Depois para Glasgow. E para Vigo. Um dia, chegou ao Benfica e, contra todas as expectativas, marcou um golo em Alvalade na única oportunidade de que dispôs.
Os tempos no estrangeiro tinham estragado o Joca para sempre!