(ou como carpir mágoas em público sem assumir que a derrota com os
trolls foi um vexame. Em retrospectiva, aliás, parece absurdo que tenha ficado gente à porta do estádio, a berrar toda a noite, em tronco nu, contra a equipa, a direcção, o clube e os travestis que representaram o Sporting. E eu sei porque fiquei lá a berrar sozinho)
Serafim é barbeiro. Barbeiro à antiga, acrescento. “Não há cá lâminas novas na navalha a cada corte, que isto não está para arraiais”, diz, cofiando o cabelo grisalho, quando lhe perguntam se não vai limpar o sebo, a brilhantina ou o sangue vertido pelo último escalpe que a navalha a custo sulcou.
Há quem não goste de Serafim. Quem? Os inspectores do Ministério da Saúde que lhe fecharam a barbearia no mês passado, por exemplo. Ou os senhores das Finanças que lhe perguntaram há dias se planeia entregar algum dia uma declaração de rendimentos. Nesses momentos, Serafim responde automaticamente com a frase lapidar que Pinto da Costa desferiu numa tertúlia portuense na confeitaria Petúlia: “Largos dias têm 100 anos”.
A Albertina, lá em casa, já lhe pediu que parasse com a lengalenga. “Estás a ficar parecido com o Toninho, aquele que era maluco e dava com a caixa de esmolas na cabeça quando não lhe faziam as vontades.” Vexado, Serafim cala-se, mudo e quedo. “Ela verá. Largos dias têm 100 anos.”
Mesmo trabalhando no coração de Lisboa, Serafim é portista. Portista de clara, gema e salmonelas. Adaptável como poucos aos ziguezagues da política portista, já o ouviram referir-se a Carolina Salgado como “a dona Carolina”, mas também o escutaram a vociferar: “Aquilo é que é uma p*** que ali anda!”. Aos seus olhos, Miguel Sousa Tavares já lhe mereceu incontida veneração: “um doutor que faz inveja aos outros doutores no parlapiê dos palanques”. E já lhe mereceu fúrias nervosas: “Pois se não é um gigantesco alarve, hein?”, resmunga, contrariado, a cada
Nortada.
Calhou em destino que o meu escalpe e a tesoura de Serafim travassem histórico duelo três dias depois do Sporting-Benfica.
Serafim: Olá, menino. Então o paizinho tem saído?
Eu: Não, sôr Serafim. Ainda lhe faltam três meses para a primeira precária.
Serafim: É verdade, é verdade. Como o tempo passa! Hrum hrum. Viu o joguito?
Pausa.
Eu: Vi, vi. Queria o corte do costume: um caldinho à Paulinho Cascavel.
Serafim: Hrum hrum! Aquilo é que foi um sarilho! Era pespegar-lhe um par de açoites.
Eu: A quem? Ao Custódio?
Serafim: Não, menino. Ao árbitro. Foi um penalty que até um invisual marcaria. Mas o malandro ia bem encomendado.
Eu: Quem? O árbitro?
Serafim: Não, menino. O Custódio!
Eu: Os miúdos estão cansados, sôr Serafim. Aquilo é rapaziada que ainda trabalha a recibos verdes.
Serafim: Pois é, pois é. Em vez de dinheiro, dão-lhes recibos verdes e depois querem merenda.
Eu: O que custa, sôr Serafim, é ter jogado com os gajos com punhos de renda.
Serafim: Com quê, menino?
Eu: Com punhos de renda.
Serafim: O homem nem é muito mau, menino. Mas que sai mal dos postes, lá isso sai.
Eu: Olhe, sôr Serafim. Não era o Malhadinhas do Aquilino que dizia que “somos almocreves e na estrada andamos. Não paga a pena apeguilhar!”?
Serafim: Ó menino, eu isso não sei, que eu não me dou com essa gente. Mas largos dias têm 100 anos, isso garanto eu!
Por uma vez, alarves, ganhem hoje um jogo decisivo!!!