Solidariedade com MST
O “24 Horas” traz hoje à estampa a notícia perturbadora de que a casa de Miguel Sousa Tavares (MST) na Lapa foi assaltada. Mais grave: os larápios levaram o computador portátil do comentador, onde repousavam dois romances semi-acabados, uma crónica de “A Bola” onde se registava ineditamente que fora ele o primeiro a ver genialidade no Quaresma, no Mourinho e no pastel de Tentúgal, e duas prosas para o “Expresso” descrevendo como “Setúbal é o sovaco de Portugal, mesmo ali por baixo do estuário do Tejo, onde está encafuada toda a sujidade burocrática e centralizadora de Lisboa”. Material inédito, portanto.
Sempre humilde, Sousa Tavares sugeriu que se tratava de um golpe “muito estranho”, talvez instigado por um escritor rival despeitado, desejoso de lhe criar mossa. Naturalmente, nós, os que temos pouco para fazer, imaginámos todos os suspeitos possíveis. Sabemos pelo relato que o assaltante terá descido em rappel do telhado para a varanda do apartamento de MST, o que, por um lado, talvez exclua José Saramago, que se costuma constipar quando pratica rappel. Por outro lado, um suspeito poderia ser o pescoço de José Rodrigues dos Santos, que se presta bem a essas acrobacias, embora normalmente venha agarrado a um papillon e a uma piscadela de olhos totalmente a despropósito.
Ocorreu-me também que, desde o desaparecimento do computador de MST, nunca mais ninguém pôs a vista em cima de Ramalho Ortigão, o que o torna um bom suspeito. É verdade que Ortigão está morto há 93 anos, o que dificultaria mais o roubo, mas essa hipótese não é menos rebuscada do que o enredo do “Rio das Flores”. E vendeu-se na mesma.
Como os senhores jornalistas, eu busco incessantemente o móvel do crime. Seria um aparador? Uma escrivaninha de cedro com embutidos de contraplacado? Poderia um móvel ser um móbil do crime? Ou seria este o maior erro da história contemporânea portuguesa desde que o Nicolau Breyner nos aconselhou a virarmos as costas à disfunção eréctil?
Espreitei por isso com cuidado a hipótese que me restava. Media-a bem. Avaliei-a rigorosamente. Espetei-lhe até um pau para garantir que ela não levantava a cabeça e me mordia (a hipótese, não a disfunção eréctil, ó grosseirões!).
Parece-me evidente que, apesar de todos os críticos, Portugal se desenvolve velozmente. O invasor de domicílio de antanho, tantas vezes leitor confesso de Sartre e preso nos labirintos do existencialismo tardio, é hoje mais educado. Não me custa a acreditar que, dentro de alguns dias, o computador será devolvido. E se houver justiça, MST agradecerá ao larápio que apagou as 400 personagens supérfluas do próximo romance, desengordurou os diálogos cretinos que não acrescentam nada e corrigiu as dezenas de erros factuais, que colocavam o arquipélago das Molucas ao largo das Berlengas e confundiam o marechal Carmona com Carmona Rodrigues.