Mãos ao ar

Blogue de discussão desportiva. Qualquer semelhança entre este blogue e uma fonte de informação credível é pura coincidência e não foi minimamente prevista pelos seus autores. Desde já nos penitenciamos se, acidentalmente, relatarmos uma informação com um fundo de verdade. Não era, nem é, nossa intenção.

quinta-feira, maio 31, 2007

O Sistema dos Pobrezinhos


Há pessoas que devem ser pobres toda a vida.
Leu bem: enquanto a ciência abandona o paradigma genético e diz que os homens podem ser o que eles quiserem, mesmo que o que eles queiram seja vestir um avental e recriar as cenas da Beatriz Costa n’ “Aldeia da Roupa Branca” [acontece. Não digam que não acontece, porque ele há muito caso cuja ilusão de grandeza passa pelo cativante mundo da barrela], o Mãos ao Ar inscreve-se na mais profunda tradição do determinismo genético.
Somos aquilo para que estamos geneticamente programados.
Tomemos o Sporting como exemplo. O Sporting tem de ser pobre. Tem de fazer anualmente das tripas coração para cumprir orçamentos miseráveis à justa – tudo muito contado, tostão a tostão, comissão a comissão, chauffeur a chauffeur.
Se fosse possível pegar no Sporting pelos tornozelos e virá-lo de cabeça para baixo, não cairia um tostão dos bolsos. Não o digo em lágrimas, atenção! É a voz da resignação que mo murmura.
(Já vos disse que oiço vozes? Sou como a Alexandra Solnado e a Joana d’Arc, mas eu prefiro a carne mal passada)
Fosse o Sporting um personagem da história do cinema e seria, sem dúvida, o Charlot: sem uma moeda no bolso, mas com uma determinação inquebrável e as maneiras mais refinadas da criação. A sina foi aceite pelos adeptos, não há volta a dar.
De súbito, porém, cai do céu uma fortuna: 25 milhões de euros, ou 24 se se descontar a fatia que cabe ao Real Massamá. Ora, quando uma fortuna não sai às pessoas certas acontece inquestionavelmente uma coisa terrível: ela sai às pessoas erradas. Os dirigentes do Sporting não sabem o que é ter dinheiro em caixa. Gente de espíritos simples e habituada a rapar o mais vazio dos tachos, a recém-adquirida fortuna só vai gerar deslumbramento.
Nas próximas semanas, vou caminhar nervosamente até ao quiosque, temendo todos os dias que os jornais anunciem compras mirabolantes de chilenos, paraguaios, argentinos e muitos, muitos brasileiros. Se aceitam um conselho de um adepto que ouve vozes e anda às vezes de avental, comprem o passe do Romagnoli e do Caneira e metam o resto no mealheiro.
Hummm?
O economista Adam Smith, que às vezes também fala comigo apesar de estar morto há mais de 200 anos, está a dizer que concorda. E que se alguém passar pelos lados do cemitério de Kirkcaldy, que lhe leve um cobertor.

quarta-feira, maio 30, 2007

Rodrigo...

Eu sei que tu foste sequestrado, Rodrigo. Estás preso contra tua vontade, provavelmente na torre mais alta do castelo mais longínquo. Tenta fugir, Rodrigo. Faz uma corda com os lençóis da cama e desce pela torre de menagem.
Grita pela janela, filho, até que escutem os teus queixumes.
E liga para a tua mãe, Rodrigo.
Raptaram-me, meu filho desportivo. E nós vamos apresentar queixa no Ministério Público por sequestro.

Se por acaso se confirmar que te pisgaste por tua livre vontade, meu grande cabr**, p***l**r*, benfiqu**ta, peço-te um único favor: imagina um alicate, uma esfregona Vileda, a Maria José Rita e o jeito que te dava poderes continuar a sentar-te.

Agradecido.

terça-feira, maio 29, 2007

Rescaldo da época e incidências da Taça

Os próximos tempos vão ser de alguma dificuldade para o Mãos ao Ar. Compreende-se: acabou a época futebolística, segue-se o «defeso» e, como se sabe, pouca matéria haverá para debater. Certo que vamos ter ao longo deste tempo notícias constantes das estrelas que o Benfica está a negociar, que vai contratar no próxima semana, que chegam a Lisboa nas próximas horas, que vão assinar amanhã e que depois de amanhã já estão noutra cidade qualquer a assinar por outro qualquer clube. Mas isso tem sido tão habitual nos últimos anos que acaba por se tornar banal. E assim, o Mãos ao Ar fica outra vez descalço. Por isso, para animar as hostes, façamos um rescaldo da final da Taça de Portugal.
Primeiro que tudo, desfaça-se a ilusão de que assisti ao jogo ao lado do Bulhão Pato. Estávamos em lugares diferentes, em sectores diferentes – eu estava do lado da malta do Sporting. O Bulhão, como sócio recente do Belenenses, estava do lado dos azuis. «Ao fim ao cabo», confidenciou-me ele antes do jogo, «sempre tenho uma costela belenense». Escondido no bolso esquerdo, um cachecol do Sporting, guardada na lapela do casaco, uma caneta azul do Belenenses comprada na loja do Belenenses. «Sabes», disse-me, «a julgar pela quantidade de gente que jurou partir-me o focinho, sempre trago dois símbolos diferentes, um de cada clube. Para evitar coisas…»
Ok, combinámos encontrarmo-nos depois do jogo. Faço um parêntesis para dizer que estava mais gente do Belenenses do que pensava existirem. Foi a primeira grande surpresa da tarde. Acho, aliás, que deveriam estar no Jamor todos os adeptos do clube que existem no país e, segundo alguém aqui afirmou a pés juntos na semana passada, espalhados um pouco por todo o mundo. Estavam lá todos – a prova é que, no pavilhão do Restelo, onde o jogo foi transmitido em ecrã gigante, estavam menos de cem – eram os que sobraram e que não conseguiram bilhete.
Após o jogo, e conforme combinado, lá fui à procura do Bulhão. Nessa altura, vi uma confusão nas bancadas meio despidas: dois adeptos à pêra. Distingui logo o Bulhão a tentar-se escapulir de um hooligan azul. «Larga o gajo, Chouriço, não vale a pena», ouvi gritar. O Bulhão, já meio desfraldado, berrava para o hooligan: «Deixa-me a costela em paz, olha que esta é a minha costela belenense!» Fui em seu auxílio. Os prosélitos da cruz de Cristo que assistiam à cena começaram a juntar-se. Isto está a ficar feio, pensei. Tentei ir lá pelo diálogo: «Amigos, isto é a final da Taça, o clima é de festa, isto é tudo malta do povo, deixem-se dessas coisas e vamos todos comer aí uns couratos e beber umas minis». Quatro adeptos azuis chegaram ao pé de mim: «Quéquetu queres, pá?» Eu? Nada, amigos, como é que vocês se chamam, amigos? Em uníssono, responderam-me «Nós somos os anónimos e costumamos comentar em blogues com este nome». Perante os anónimos, eu e o Bulhão, cobardemente, conseguimos fugir. E depois fomos para Alvalade e para o Marquês comemorar.
Feitas as contas, a época acabou por ser equilibrada: campeonato para o FC Porto, Taça para o Sporting, acesso directo à Liga dos Campeões para Sporting e FC Porto, final da Taça para o Belenenses, quarto lugar para o Braga. Equilíbrio e justiça.

P.S. – Demarquei-me dos trocas de comentários existentes ao longo da semana passada entre os leitores deste blogue a propósito de dois posts do Bulhão, mas quero louvar um dos comentaristas que mais se destacou ou que, pelo menos, não era anónimo – estou a falar de um tal Um Gajo da Urbe, ou Um Cidadão da Humanidade, ou Cidadade da Humanidão, ou coisa que o valha, mas que, pelo menos, tem o dom da humildade: é um verdadeiro génio e poço de cultura. E modesto. E que se tem em grande conta. Para ele, que é uma fonte de sabedoria, lanço aqui um repto: responde a este teste para provar todo o teu vasto conhecimento. Se acertares, terás o meu respeito e, como prémio, ganharás uma caneta verde do Sporting. Aqui vai e bom «defeso» para todos.

Categoria fácil:
- Como se diz olá no dialecto tibetano?

Categoria média:
Quantos coqueiros existem no arquipélago dos Bijagós?

Categoria difícil:
Quem foi o vencedor da Taça de Portugal referente à época de 2006/2007?

segunda-feira, maio 28, 2007

Genuínos




(Do nosso enviado-especial ao Hospital São Francisco Xavier) O Luciano Rodrigues escreveu que quem demonstra esta paixão tem o futuro garantido. Também acho.
Não foi um jogo bonito, mas foi provavelmente a ida ao Jamor que mais gozo me deu: adeptos bem comportados, ambiente fantástico [afinal, eles ainda enchem uma cabeceira!], bom humor, poder de encaixe na bancada onde me sentei e entusiasmo contagiante do princípio ao fim.
Há uma semana, tinha sido o nosso miúdo a chorar baba e ranho com a perda do título.
Ontem, a meia dúzia de cadeiras de mim, as lágrimas do miúdo do Belém, desolado com o golo do Sporting, comoveram meia bancada e lembraram que, apesar de todos os golpes, este ainda é o jogo mais genuíno do mundo.
Almas caridosas perguntaram entretanto pelo meu estado de saúde. Estou benzinho, graças a Deus. É verdade que não consegui levar a camisola do equipamento Stromp com o nome do Pedro Barbosa. Não foi propriamente por receio – simplesmente, uma mão amiga introduziu-a na máquina de lavar juntamente com outras peças garridas de vestuário.
Das duas, uma: ou ia ao Jamor sem a camisola predilecta ou entrava no estádio mais nobre do país com uma camisola metade-rosa, metade-verde.
Ainda tenho uma centelha de dignidade, senhores...

Fotografias (acho) de Pedro Simões Ferreira

sexta-feira, maio 25, 2007

Preeeeeecioussssss! My Preeeeeecioussssss!


quarta-feira, maio 23, 2007

O quarto grande



O fascínio da Taça de Portugal reside nisto: uma vez por ano, uma equipa pequena, daquelas que catalogamos sem rancores no rol da meiguice, tem direito a jogar no Estádio do Jamor. Durante alguns dias, fala-se do clube, dos seus ídolos, dos seus adeptos. É bonito. É democrático. E para a brigada geriátrica que constitui a massa adepta do Clube de Futebol Os Belenenses pode ser a última hipótese de inspirar umas golfadas de ar puro antes do último suspiro.
Antes de me ameaçarem com tijolos e mai’ não sei o quê, recordo que falo na qualidade de sócio do Belenenses. Tenho esse direito. Li os estatutos de fio e pavio – antes de os deixar cair – e não vi lá nada que impeça um associado recente de tomar palavra e de ser levado a sério.
Ora, a questão que me interessa debater prende-se com o estatuto do «quarto grande», reivindicado, que eu saiba, por quatro clubes – o «mô» Belenenses, o Boavista, o Sp. Braga e o Vitória de Guimarães. O Belenenses invoca a história, o Boavista o número de troféus, o Sp. Braga o passado desportivo recente e o Vitória de Guimarães o número de maluquinhos. Como um grupo de loucos que discute quem governará o asilo, os adeptos destas quatro entidades são capazes de levar o debate ao extremo para provar o seu ponto de vista. É verdade que, somados, totalizam uma multidão de catorze pessoas, mas são, mesmo assim, pessoas muito obstinadas.
Vamos por partes, como aqueles bonecos das vacas segmentadas nos talhos dos hipermercados. O Belenenses… quer dizer… nós [é difícil habituar-me, mas isto vai!] temos propensão para os desastres. Tínhamos o Pepe, jogador finíssimo, elegantíssimo, jeitosíssimo, mas deitou o dente a dois pedaços de chouriço estragado e ficou-se.
Íamos ganhar o campeonato de 1955 – ai, Maria, agora ninguém nos apanha! – e, a dois minutos do fim, um golo do Martins [Sporting] estragou tudo!
Tínhamos o regime controlado, com brigadeiros, generais e o almirante do nosso lado, e a revolução de 1974 deitou tudo a perder. E começámos a descer de divisão. E, se não fossem uma idas a Badajoz e a Ayamonte para uns torneios, não íamos jogar fora do país há mais de 20 anos.
As tragédias têm um lado positivo, como costumam dizer os cangalheiros: produzem compaixão. Toda a gente gosta do Belenenses. Olhem bem para o adepto escolhido para ilustrar este texto: não apetece apertá-lo, como um grande urso felpudo, e soprar-lhe na barriga, como se faz aos bebés, para o ouvir rir? Cutchi, cutchi, cu.
Mas, em rigor, as tragédias não podem transformar-nos em algo que não somos. O Belenenses não é o quarto grande, pelo simples motivo que os grandes são só três. Os catorze maluquinhos podem continuar a agredir-se com canadianas ortopédicas que isso não muda nada: ninguém fala no oitavo anão na história da Branca de Neve, pois não? No sexto violino do Sporting? No quarto mosqueteiro? No quarto segredo de Fátima?
Não há quatro grandes em Portugal. Tenho muita pena. São muito simpáticos, meiguinhos e tal, mas já lá diz a sabedoria popular: sem óculos não se fazem omeletas.
E termino por aqui. Imagino que a massa adepta do Belenenses terá perdido mais um ou dois membros no curto espaço que demorei a escrever esta prosa. E eu não sou menino para crueldades!

terça-feira, maio 22, 2007

A saga dos rectângulos mágicos



Não há uma maneira fácil de contar isto, por isso cá vai de supetão: já tenho duas bancadas centrais para o Jamor! Expresso a minha solidariedade com aqueles senhores que hoje à noite vão acampar no Estádio de Alvalade na esperança de amanhã adquirirem um reles bilhete. Hah, hah! [gargalhada trocista, como faz o Nelson Muntz, dos “Simpsons”].
Como? Por portas travessas? Por amigos na Federação ou na Associação? Por cunhas no Sporting? Não, senhores. Comprei os dois bilhetes da forma mais honrada: fiz-me sócio do Clube de Futebol os Belenenses. Como todos os apelos de fé, a minha paixão pelo Belenenses surgiu de repente – mais concretamente ao final da tarde de ontem. Por coincidência, o ímpeto associativo nasceu no exacto momento em que os noticiários disseram que já só havia três mil bilhetes disponíveis em Alvalade.
Naquelas circunstâncias, senhores, um homem está disposto aos maiores sacrifícios. Fui para o Restelo na firme disposição de, se necessário fosse, dormir com o presidente Cabral Ferreira. Diz-se aliás que é homem muito meigo e, quem sabe?, talvez não ronque.
Os minutos que se seguiram são dignos de figurar na minha hagiografia.
Esperei hora e meia na fila da secretaria. Chegou, por fim, a minha vez. Quando me disseram que aquela não era a fila certa para novos associados, fiz aquilo que qualquer adulto responsável faria: solucei compulsivamente agarrado ao segurança de serviço.
Novo «guichet». Mais espera.
- Aqui tem o boletim de inscrição. Tem fotografia?
- Tenho, sim senhor.
- Tem fotocópia do BI?
Como um animal ferido, soltei um grito lancinante:
- Nãããããããããoooooo!
- E também precisa de um sócio proponente!
Mais nervos. Num dos três «guichets” de venda dos bilhetes, uma das senhoras anuncia em voz alta:
- Já não tenho mais bilhetes!
Mais stress. Encontrar uma espelunca que fizesse fotocópias. Comprar uma caneta do Belenenses na Loja Azul [já não escreve!]. Preencher à pressa o formulário. Voltar à fila.
Falta o sócio proponente. Perguntar a um. Perguntar a outro. À terceira, encontrei uma senhora com coração de ouro que me assinou a ficha, não sem antes perguntar:
- Mas é mesmo do Belenenses?
- Ó minha senhora, que pergunta? Vamos a eles, vamos a eles!
Voltar ao «guichet». À minha frente, um senhor faz cento e cinquenta perguntas sobre as condições da piscina e as aulas de natação para deficientes. Mais nervos. O segundo compartimento de venda de bilhetes fecha-se com estrondo:
- Também já não tenho bilhetes!
A fila de associados empertiga-se, indignada, pressentindo o fim.
Chega a minha vez. Entrego os formulários, a fotografia, a fotocópia, o electrocardiogama e o cartão de dador de órgãos. Diligente, o funcionário insere os dados no computador, uma tecla de cada vez, lenta, lentamente. Cada dígito provoca-me arritmias. Falta uma última tarefa – a mais perigosa – uma vez que já sou sócio, mas ainda não tenho bilhete. Volto ao início da fila da bilheteira.
- Lembra-se de mim, aquele que chorou há bocado? Posso furar a fila?
A turba indigna-se. Chama-me nomes. Ignoro-os olimpicamente.
Chego à bilheteira. Compro dois bilhetes. Na mão da senhora, restam pouco mais de duas dezenas de rectângulos mágicos.
A pouca distância da fila, o presidente Cabral Ferreira contempla, embevecido, o movimento de associados – velhos e recentes. Não resisto a tocar-lhe ao de leve no ombro, comentando:
- Nem sabes o que perdeste!

P.S.: "Perdi" a minha cópia dos estatutos junto aos pastéis de Belém. Se alguém os encontrar... guarde-os!

segunda-feira, maio 21, 2007

Eu também saí de Alvalade com esta tromba



Não vale a pena dizer que foi injusto – até não foi, como não seria se Sporting ou Benfica tivessem terminado à frente.
Não vale a pena falar de melhor futebol – acabámos melhor, tal como o FC Porto jogou melhor em Novembro/Dezembro e o Benfica não esteve malzinho em Janeiro/Fevereiro.

Mas lá que custa perder o caneco por um ponto, custa mesmo!

quinta-feira, maio 17, 2007

A formação de Neca (parte 3)

O hoje distinto professor Neca, já se sabe, tornou-se mediático através do futebol. Ninguém lá na terra, diga-se, lhe augurava grande futuro, mas o destino – e alguma sapiência – projectou-o para a ribalta. Como tantos outros, o petiz Manuel começou a dar os primeiros chutos em bolas de trapos nos terrenos baldios perto da casa onde vivia, mas a indiscutível inaptidão para conseguir acertar naquela coisa vagamente redonda com que se jogava, conseguiu irritar todos os parceiros de equipa. Tentaram de tudo para o demover – mandaram-no para a baliza, puseram-no só a fazer lançamentos laterais, colocaram-no até a fazer de bandeirola de canto. Em vão. Fosse qual fosse a utilização, Manuel aderia com incontido orgulho e enormes manifestações de entusiasmo. Dizia então: «Eu cá quero é participar. Como lá diziam os gregos, ‘meneses são em copos somos’, e esta vai passar a ser a minha máxima».
Os amigos ainda pensaram utilizá-lo como bola de jogo: raparam-lhe a cabeça – ainda hoje não conseguiu recuperar desta tosquia forçada – mas desistiu-se da ideia pela visível dificuldade em arrancá-la do pescoço. «Mens neca in pescoço sitis!», gritou num misto de latim e swahili. E, a partir daqui, ganhou o diminutivo e o respeito de todos. Neca cogitou então com os seus botões: «Okey, tenho visíveis dificuldades em dominar o esférico, mas a minha inteligência pode fazer distinguir-me dos demais. Mens neca inteligentis est». Deixou Galegos e tudo para trás e, determinado, tornou-se um estudioso do futebol. E pensou em grande – porquê começar pelo ISEF, se podia adquirir conhecimentos mais vastos lá fora? De trouxa às costas, fez-se à estrada. A boleia dos camionistas levou-o até à Europa de Leste, onde, dizia-se, o futebol era mais avançado. Matriculou-se na escola romena de Targu Mures, mas foi recusado, até que, com um diploma forjado, conseguiu inscrever-se na universidade de Craiova. A parte teórica foi brilhante, mas chumbou na prática – compreende-se pela dificuldade da prova: dar dois toques consecutivos numa bola. Mas não desistiu e correu as melhores universidades futebolísticas da Europa: Dniepropetrovsk, Chisinau, Ventspils, Borisov, Plovdiv e, no último ano, o estágio de especialização em Leipzig, na RDA, onde tomou contacto com as mais modernas tecnologias de despistagem de substâncias proibidas. Com mais dois colegas portugueses que concluíram o curso – o professor Zeca, que hoje orienta o Fornos de Algodres, e o professor Cajó, que treina os juniores do Ponte de Frielas – fez a viagem de finalistas às Maldivas, com o subsídio atribuído pelo conhecido magnata saudita Petro Dolars, que lhes leccionara a cadeira de Subornos e Aliciamentos Legais. E, naquelas ilhas paradisíacas, Neca refinou-se: aparou a testa proeminente que é sinal de magnânima inteligência e deixou crescer uma fileira de pêlos alinhados acima do lábio superior, como sinal de respeito e reverência. Estava criada a sua imagem de marca – a marca de um vencedor. Ali, com os pés de molho nas quentes águas do Índico e com a camisa branca e palmeiras verdes desabotoada ao vento, traçou os planos a médio-prazo: «Vou ensinar os indígenas daqui a jogar com os cocos e, mais tarde, regressarei a Portugal para subir e descer de divisão com a mesma equipa». Mas a ambição não cabia naquele corpo franzino e, inspirado pelas cores da camisa, gritou a plenos pulmões: «E hei-de entrar para a história do futebol português por ter atribuído o título na última jornada a uma equipa que envergue verde e branco». A primeira profecia (seleccionador das Maldivas), cumpriu-se. Que se cumpra a segunda.

quarta-feira, maio 16, 2007

Vamos a eles, Neca (parte 2)

(segunda parte da série sobre o professor Neca, destinada a dar coragem e alento ao treinador do D. Aves)

Não sou particularmente dado às coisas do espírito, mas em 1994 tive uma prova inquestionável da presença do tinhoso. Submeto aqui, perante o estimado auditório, que só mesmo o perverso demónio juntaria Artur Jorge, Zoran Filipovic e o professor Neca no mesmo banco de suplentes. O demónio, ou quanto muito, Manuel Damásio. O resultado deste aprendiz de feiticeiro? Como tantas vezes sucedeu aos alquimistas da Idade Média, a mistela ficou instável e explodiu na mão do inventor.
Retiro um exemplo, de entre tantos, ocorrido no Estádio de São Luís, nos idos de 1995. Jogavam Farense e Benfica. Numa ponta do banco de suplentes, o Benfica tinha Artur Jorge, enlouquecido, que dava côdeas de pão a pombos imaginários. Do outro lado do tandem estratégico, Filipovic, o homem que até quando contava carneiros para adormecer, os dispunha em linhas defensivas reforçadas. Restava Neca, o nosso Neca, como ponto equilíbrio entre os PH ácido e alcalino que então dirigiam o Benfica.
António Rola apitou para o início do jogo.
Artur Jorge (AJ): Piu, piu, pombinhos! Está aqui o vosso Gigi.
Zoran Filipovic (ZF) [dirigindo-se aos avançados Edilson e Caniggia]: Defendam, caramba, defendam!
Professor Neca (PN): Onde é que eu me vim meter! Quem não tem lagosta tem de dar mobilidade ao carapau.

Surgiu o primeiro golo do jogo, apontado pelo Farense.
PN: Estava mesmo a ver. Isto quem não tem bisturi opera com berbequim.
ZF: Temos de defender. Defender mais. Defender melhor. Paulo Pereira, vai aquecer.
PN: Ó Artur, tem paciência, mas este bósnio é maluco.
AJ [declamando]: Bósnio, bósnio, gentil que te partiste! Serás chuva? Serás gente?
ZF: O que é que ele diz?
PN: Não faças caso. Quem não tem melão tem de comer gengibre.
ZF: Mas eu sou sérvio.
AJ [cantarola]: Oliveirinha do sérvio, o vento leva a ramada... Ó i, ó ai, só a mim ninguém me leva.

No relvado, o Benfica marcou o golo do empate.
ZF: Ahá! Já está! Agora, é defender, rapaziada. Não é, Artur?
AJ [enuncia]: Rapaziada, marmelada, endiabrada, abracadabra, chupa-cabra
PN: O quê? E lá está ele a atirar pão ao quarto árbitro outra vez.
ZF: Não ligues, Neca. Não ligues. Se calhar, metíamos mais um defesa para os meter na ordem.
PN [suspira]: Quem não tem xilofone tem de pôr os ferrinhos de molho.

O jogo decorreu calmamente até ao minuto 70, altura em que o Farense voltou a marcar.
Artur Jorge [de joelhos no relvado, em posição de meditação]: Mmmmmmmm! Eu sou a reencarnação budista da Cármen Miranda.
ZF: Oh Artur, tira o cesto de fruta da cabeça. Sofremos um golo. O que é que fazemos?
AJ [canta]: Ai, baiana fogosa, seu corpo de hena me deixa maluca!
PN [filosófico]: Isto está mau! Quem não tem papoilas cultiva beterraba!
ZF: Se calhar, metemos mais um defesa, não?
AJ [meneando o corpo]: Se ocê julga que banana é fruta, banana não é fruta, não.

Até final, o Benfica sofreu mais dois golos. No final do jogo, Manuel Damásio, furioso, deslocou-se ao balneário.
Manuel Damásio: Meus senhores, correu muito mal. Exijo medidas.
PN: Presidente, quem não tem unhas coça-se com as gengivas.
ZF: E se comprássemos os dois defesas do Farense – o Jorge Soares e o King? * Já sabem o meu lema: quem tem defesas não tem fraquezas, não é, Artur?
AJ [em cima de um cabide]: Oh captain, my captain! Alguém viu os meus pombinhos? Piu piu, pombinhos!

* Verídico!

segunda-feira, maio 14, 2007

Muralha de Neca (parte I)

Admito que não tinha fé no fim-de-semana passado. Mas agora é diferente. Onde outros vêem um beco sem saída, eu vejo o professor Neca. Talvez não tenha o carisma ou o prestígio de um Alex Ferguson, mas é mais alto.
Ao longo da semana, este blogue evocará múltiplas virtudes do professor Neca, último bastião das nossas possibilidades de chegar ao título. Levaremos Neca em ombros até ao Dragão. Narraremos traços lendários do seu trajecto. Como Luís Lourenço fez com Mourinho, seremos seus biógrafos apaixonados e sem ponta de rigor. Assim sendo, abram alas.
A Lenda de Neca – O Orador
Em Galegos, Santa Maria de Barcelos, ecoa o choro estridente de um recém-nascido. Estamos em 1951, o ano em que, pela primeira vez, um radar terrestre capta a deslocação de um objecto voador não identificado. Que relação tem o incidente com a biografia do professor Neca? Talvez muita. Talvez nenhuma. Mas é significativo, de qualquer maneira
Ainda exausta, logo a mãe intuiu que algo grandioso estava reservado ao gaiato. Manuel teimou que ficaria. Segurando-o, firme, nos braços, soltou dichote que troaria, célebre, ao longo da carreira do nosso mito:
- Ai home, que não tem um pêlo na venta. Mais parece uma b’neca!
O pai, extremoso (não confundir com estrumoso, cambada!), anuiu. E Neca ficou para a posteridade.
Há quem eleja em Neca a astúcia táctica ou o arrojo estratégico. Dele se escreveu que, como o general Rommel, estuda tenazmente o adversário antes de lhe desferir mortífera investida. Que é como quem diz: sete defesas, dois trincos e mais um homem solto para as dobras.
Hoje, porém, foco-me no orador. No professor Neca, o orador vigoroso funde-se com o mestre da retórica, como se cada frase fosse um contra-ataque venenoso, carregadinho de malícia. Há quem compare os discursos do professor Neca na sala de imprensa do Campo Bernardino Gomes às réplicas lendárias de Churchill na Casa dos Comuns. Não foi aliás Neca quem disse “para tornar um povo grandioso, é necessário mandá-lo para a batalha mesmo que tenhamos de lhe pontapear as calças”? Em rigor, não. Foi Benito Mussolini antes de invadir a Abissínia. Mas quem conhece, sabe que as fábricas do vale do Ave não são muito diferentes da Abissínia dos anos 1930. E Neca também é mais alto do que Mussolini ou Churchill, sobretudo agora que eles estão mortos, o que merece ser sublinhado.
Pesquise na Internet e encontrará as mais famosas pérolas verbais do professor Neca. “Sou um tipo do norte no meio da mouraria”, disse ele, com tacto, quando foi adjunto do Benfica [saga que merecerá um capítulo à parte mais para o fim da semana]. “Como sistema, prefiro o 4-3-3 dos pobres”, defendeu-se quando lhe apontaram que as suas equipas podiam tentar, a espaços, sair do respectivo meio-campo. E sobretudo: “Quando não se pode ter lagosta, tem que se dar mobilidade ao carapau.”
Como Rodrigues Miguéis, Neca refina com a tarimba. Os mais iconoclastas vêem na frase uma metáfora sem pés nem cabeça, mas ela é a verdadeira Pedra de Roseta para ler o pensamento do professor. Está lá tudo: a crítica social mordaz; a caricatura fina; a experiência feita do homem da lota.
No Estádio do Dragão, Neca não terá seguramente lagosta! Mas, por Deus, o carapau será mais móvel do que nunca. E isso dá-me extraordinário alento!

terça-feira, maio 08, 2007

Alhos e bugalhos

Nos jornais sérios, os leitores fazem perguntas ao provedor. Queixam-se de práticas defeituosas dos jornalistas. Acusam a publicação de desrespeitar o estatuto editorial. O provedor escuta, fala com os jornalistas visados e emite uma opinião que é publicada, sem censura, da respectiva direcção. A publicação das queixas do provedor é bonita, é democrática e, no ano seguinte, ao abrigo das mesmas regras democráticas, o provedor é recambiado para o pardieiro onde leccionava aulas antes de alguém ter descoberto que ele, se calhar, dava um belíssimo provedor. Pelo caminho, os jornalistas que por ele foram ridicularizados na praça pública gravam-lhe na pintura do carro várias mensagens de boas festas e o director do jornal inflige picadas de agulha num daqueles bonecos de voodoo feito à sua imagem. É bonito e é democrático, repito.
No “Record”, é diferente. O provedor não está interessado em ouvir ninguém. Suspeito que Rui Cartaxana queria uma página de opinião só dele, mas ninguém fez caso. Deram-lhe a página do provedor, que é uma espécie de despensa do jornal: cabe lá tudo, mas é a última divisão da casa que se quer mostrar às visitas. Normalmente, espelha com a página dos classificados e dos editais da Câmara Municipal de Alenquer.
Rui Cartaxana, claro, vinga-se.
Gosto muito de ler as rubricas dos provedores, mas o “Record” foi o primeiro jornal onde encontrei um provedor que não suporta leitores. Por norma, quando não concorda com os leitores (e que, por inacreditável coincidência, representam perspectivas sportinguistas e/ou portistas) Cartaxana despacha-os com um grunhido frásico, equivalente verbal à vassourada para afastar gatos. Exemplo clássico:
- Leia, que está lá tudo! (utilizado praticamente para tudo, desde o leitor que se queixa que a manchete do dia anterior foi absurda até ao leitor que se queixa que o Simão e o Katsouranis têm sempres notas 5, e assim não pode ser, que me lixam a Liga Record, e dão sempre os carros aos outros, e eu posso ser guarda-livros aqui em Benavente, mas não me passam a perna com essa facilidade!)
Também há leitores – como o de hoje – que expressam pontos de vista com os quais Rui Cartaxana concorda. Nesses casos, Cartaxana, magnânime, louva-os por terem tido o discernimento de, entre tantos articulistas, terem escolhido o seu espaço para se queixarem. O exemplo?
Um senhor queixou-se que um colunista de “O Jogo” tinha escrito que o derby Benfica-Sporting era um jogo entre fidalgos arruinados e que só servia para engrandecer a qualidade do FC Porto, que é muita, e que a qualidade dos clubes de Lisboa, essa, era pouca. O senhor de “O Jogo” dizia também que isso era sintomático da decadência de Lisboa e da ascensão do Porto como grande cidade europeia, apesar das assimetrias provocadas pela centralização. Desconheço por que diabo o leitor se queixou ao provedor do “Record” por um texto publicado n’ “O Jogo” (aliás, não sabia que há leitores – assim mesmo, no plural – dos colunistas de “O Jogo”. Fico muito contente. Ainda para mais, quando se trata de alguém com inegável poder de análise).
Rui Cartaxana atacou a questão com apetite. E refutou, com minúcia, a coluna infame! Evidentemente, o colunista de “O Jogo” não sabe nada. Toda a gente sabe que em Lisboa está concentrada a maior riqueza e bem-estar do país. E que o Porto está entre as regiões mais decadentes, pobres e tristes da Europa. Logo, há mais qualidade nos clubes de Lisboa do que nos do Porto.
O debate é prometedor. Imagino que, nas próximas semanas, evoluirá de comparação em comparação até os dois articulistas não terem outra alternativa que não seja a via mais honrada: a comparação escrupulosa do tamanho das respectivas minhocas. E, nessa fase do debate, aposto claramente em Cartaxana. Afinal, foi o articulista de “O Jogo” que se queixou que o Porto sofre há décadas na pele (por assim dizer) os custos das assimetrias. Imagino o que isso não fará a uma minhoca.

quinta-feira, maio 03, 2007

Feromona, Inquisição e Pata de Ganso

O Benfica prepara-se para queimar o médico João Paulo Almeida na fogueira inquisitória. Pessoalmente, acho bem.
O fogo, como o leitor sabe, purifica, e tudo o que arde costuma curar. Excepto talvez se beber de uma golfada meia garrafa de soda cáustica. Nesse caso, o que arde faz um bocado de comichão. E queima um ou outro órgão vital. Mas não é grave: como o João Querido Manha demonstra semanalmente, pode-se sobreviver sem vários órgãos nobres.
Dizia, porém, que a tradição inquisitória está-nos no sangue. Há cinco séculos, pegávamos despudoradamente nos fura-bruxas e entretínhamo-nos com folgança. Hoje em dia, infelizmente, a maior parte das tropelias descritas no Manual dos Inquisidores são reprimidas pelo código civil, que considera horrendo remover um alguidar de entranhas de um fulano, espetar-lhe meia dúzia de cutelos no pâncreas ou obrigá-lo a assistir a um concerto inteiro dos Feromona [provocação para um dos clientes mais estimados desta casa]. São modas. Prffftttt!
Resta-nos, pois, a maledicência.
O departamento de futebol do Benfica levou a mal que João Paulo Almeida tivesse falhado três ou quatro dúzias de diagnósticos. Como tudo na vida, importa ter bom senso. Pergunto eu: em boa verdade, alguém na audiência consegue detectar diferenças entre um Nuno Gomes com e sem sintomas de pubalgia? É verdade que eu sou um leigo nestas coisas, mas desconhecia que as vítimas da pubalgia sofriam tanto. Ele é descoordenação motora, falta de velocidade, lentidão de raciocínio, incapacidade de rematar com êxito de qualquer ângulo… Espanta-me aliás que a Organização Mundial de Saúde não tenha já classificado a pubalgia como o surto mais grave de 2007, à frente do ébola, do dengue e do penteado do José Veiga.
José Manuel Delgado escreveu esta semana que um dos erros mais grotescos do departamento clínico do Benfica foi a incapacidade de detectar uma rotura na coxa de Rui Costa que media 2 centímetros (a rotura, não o Rui Costa, bem entendido!). As roturas que José Manuel Delgado conhece medem poucos milímetros. É verdade que José Manuel Delgado é muito mais viajado do que eu, e as roturas que ele conhece têm muito mais bom ar do que as minhas, mas eu ia jurar que José Manuel Delgado, e o jornal de José Manuel Delgado, procederam em Outubro ao linchamento público da clínica – com direito a manchete e tudo! – onde o idoso maestro fez a sua ecografia. E que, nessa altura, não lhes ocorreu que a culpa seria do médico.
Veio o caso clínico do Merdinhas. Diagnosticaram-lhe asas de rã, ou pata de ganso, ou uma dessas coisas com nome de refeição em restaurante chinês. Afinal, sabemos agora que o ganso grasna na perfeição, mas o joelho, coitado, perdeu algumas peças.
Logo se levantou um coro de ortopedistas indignados com tamanha incompetência. Uma das coisas que dá gosto ver nestas andanças é a solidariedade entre médicos sempre que se vislumbra no horizonte um lugar que oferece visibilidade e dinheiro e que vai vagar em breve. Ainda o corpo de João Paulo Almeida não esfriou, e já a corja necrófaga se precipita, com apetite, para a carcaça.
Na natureza, os abutres, perante um cadáver, reservam um momento de repouso ao infeliz antes de se precipitarem, ávidos, para o banquete. Evidentemente, os abutres não têm de ganhar a vida com consultas de ortopedia. Caso contrário, com tanta ingenuidade, não passariam seguramente de internos no centro de saúde de Merdelim de Baixo.
Ponto de ordem no debate: deve, ou não, João Paulo Almeida sair? Em consciência, deve. Não sendo ele o incinerado, o povo quereria seguramente preencher a pira flamejante com outra vítima.
Era o que mais faltava se apontasse o dedo ao homem que segura a tocha...