Tempos Modernos
Acabou a bola. As mulheres saíram finalmente do sofá em frente à televisão. Não voltaremos tão cedo a ser incomodados por gritinhos histéricos nas jogadas perigosas, nem teremos de responder vinte vezes a questões maçadoras:
- Sim, depois de três cantos, é penalty.
- Não, o Simão é tão pequeno na vida real como parece na televisão.
- Sim, o Pauleta tem mesmo amnésia temporária e esquece-se frequentemente de onde está e do que deve fazer.
- Pela milésima vez, não sei porque é que o Maldini não foi chamado! É possível que o Lippi não tenha de convocar sempre os jogadores mais bonitos.
Este Mundial foi, a exemplo dos anteriores, uma decepção. Contam-se pelos dedos de uma só mão os jogos verdadeiramente cativantes: o Itália-Gana, o Gana-R. Checa, o Alemanha-Suécia, o Argentina-Sérvia, o Holanda-Portugal (apesar de tudo) e, com favor, o Espanha-França [é verdade, as minhas mãos têm seis dedos, como as do Álvaro!]
Uma vez mais, tal como nas provas anteriores, o campeão do Mundo não demonstrou, para lá de qualquer dúvida, ser melhor e mais capaz do que os outros. Teve pela frente apenas uma tarefa espinhosa – a meia-final com a Alemanha –, resolvida com mais sorte do que engenho. De resto, passeou até à final, defrontando adversários menores. Ganhou à Austrália com un colpo di Grosso e atropelou uma Ucrânia demasiado espantada por ainda ali estar. Na final, imitou um urso-pardo e hibernou durante 120 minutos, aguardando tenazmente pelos penalties.
Talvez a minha memória pregue partidas involuntárias, mas os Mundiais de há 20 anos coroavam quase sempre a melhor equipa. A Itália de 1982 teve de ultrapassar Argentina, Brasil e RFA para chegar ao título. A Argentina de 1986 superou a Inglaterra e a RFA em batalhas épicas antes de poder gozar o título. O caldo começou a entornar no Itália’90, campeonato em que a cobardia se tornou a palavra-chave. Desde então, raro foi o campeão do Mundo que teve de ultrapassar sucessivamente escolhos da sua dimensão no tempo regulamentar, demonstrando, no processo, a sua superioridade. A Alemanha (1990), o Brasil (1994 e 2002), a França (1998) e a Itália (2006) foram campeões sem passar por uma verdadeira prova de fogo como as da mitologia grega. E nós, os papalvos, seguimos 64 jogos transmitidos em directo sempre à espera do jogo lendário, do jogo para a história.
Mais triste ainda: a verdade incómoda é que, passados dois dias sobre a final do Campeonato do Mundo, o leitor dá por si como o proverbial Charlie Chaplin de “Tempos Modernos”, que continuava freneticamente a aparafusar mesmo depois de o turno de trabalho já ter terminado. É triste confessar, mas, chegadas as 20 horas, ainda se senta no sofá e aguarda impacientemente pelo grande jogo do Mundial que nunca mais virá.
Em literatura, isto chama-se uma hipérbole, pois exagerei a verdade das coisas para produzir impressão mais forte. Se, de facto, o leitor ainda se sentar em frente à televisão para ver um jogo que não será transmitido, será sinal de que está a desenvolver lentamente uma esquizofrenia e precisará de um psiquiatra. Ou de um exorcista. Em qualquer dos casos, lavo daí as minhas mãos.
10 Comments:
Belo comentário, Bulhão, até pareces o Luís Freitas Lobo. E tens razão: a Itália não teve um verdadeiro teste - seria com Portugal, se nos tivessem deixado ir à final.
P.S. Ganhei um odiozinho de estimação para com Domenech - tão mau condutor de homens como tão medíocre foi como jogador
Agora, sim, perdemos toda a vergonha. Já reparou, caro leitor, que usamos a caixa de comentários para nos elogiarmos mutuamente?
Boa posta!
fiquei longe dos 64, mas achei o alemanha-itália verdadeiramente cativantes, só não me lembro bem onde ví esse jogo, mas tenho ideia de que foi verdadeiramente cativante
Ora, eu que aé concordo na generalidade em plenário, sou obrigado a discordar de um ou outro pormenor, quando a coisa desce à especialidade.
A Itália foi uma justa vencedora. A França esteve bem, mas, enquanto equipa, a Itália foi superior (falo de toda a competição, não apenas da final). Uma equipa que sofre apenas 2 golos em 7 jogos (1 de penalty e outro autogolo), sendo que nem sequer jogou com onze atrás da linha da bola, denota segurança. Por outro lado, quando consegue equilibrar esta defesa inviolável com um ataque razoavelmente produtivo (13 golos em 7 jogos; Portugal fez 7 golos... e foi votado como "equipa com futebol mais estimulante"), acham mesmo que se deve questionar o seu valor? A Itália (as várias "Itálias" ao longo da história) jogaram sempre em função das necessidades, nunca mais que isso. E quem defende tão convictamente a Itália de 1982 deverá recuar até então e redescobrir o percurso da equipa.
Por outro lado, a Itália teve pelo menos 4 dos jogadores mais importantes do torneio: Pirlo, Cannavaro, Buffon e, surpresa, um esquerdino magrinho chamado Grosso de quem poucos já tinham ouvido falar. Sobravam ainda Tony, Totti, Camoranesi (que frez também ele um grande mundial), Gattuso...
Sobre a Itália estamos conversados. Estaremos? Não. Falta "o" jogo do campeonato. Quanto a mim houve três grandes jogos (apenas três) neste mundial. Dois são citados pelo Bulhão: Gana - Rep. Checa (provavelmente o melhor jogo, com os ganeses a deliciarem quantos gostavam de futebol... até os checos, suponho), o Portugal - Holenda (sem "apesar de tudo"; futebol também é aquilo: luta, resistência física e mental, fervor, garra e... alguma sorte) e Alemanha - Itália. Quem viu o jogo sabe que o prolongamento foi lisonjeiro para os alemães - a Itália não ganhou nos 90' porque não calhou... Chegados ao tempo extra, fizeram o que melhor sabem: deixaram o adversário iludir-se com uma miragem de possível vitória e, quando já cheirava a suor (era o público já a pensar nos penalties e a ficar nervoso), vai o Grosso e dá aquela estocada tão tipicamente siciliana no Lehman. Os germânicos acham que é um pesadelo e desatam a correr por ali fora, a pensar que iam marcar um golo com a ponta de um milagre. Esqueceram-se que deus não é alemão há mais de 60 anos (o Bayern Munique já provara deste veneno em 1999 contra o Manchester Utd.). Del Piero tratou de os lembrar. Quanto a mim, este jogo foi o que mais valeu a pena de todo o mundial. Penso que é o jogo "imagem de marca", o que fica.
Um mundial merdoso, é a realidade.
E já agora, para que os "abutres" do costume não digam que vocês de elogiam mutuamente, cá estou eu a afirmar de peito feito que, posso não me sentar ao sofá á espera do tal jogo, mas sento-me ao PC á espera das vosas "crónicas".
Respondendo por segmentos:
Rui, bem-vindo sejas após prolongada ausência. O teu blog fechou? Fui lá há dias e vi um leão morto na abertura. Espero que seja só uma metáfora passageira. Sobre o Mundial, adivinho que deliraste com a derrota da Austrália: afinal, foram eles que eliminaram o "teu" Uruguai.
Guitarrista, devo-te uma explicação. Desde pequeno que tenho um fascínio pela Alemanha. Os freudianos diriam que ela se deve ao facto de a selecção de 1982 só ter jogadores com bigodes felpudos (Schumacher, Briegel, o barbudo Kaltz, Stielike). Provavelmente, afeiçoei-me à selecção alemã porque ninguém gostava dela na escola. Por isso, tenho sérias dificuldades em admitir que ela perdeu bem qualquer jogo. Mesmo que tenha levado um banho – como levou – da Itália.
A habitual inveja e "anti-italianismo" primário dos senhores que escrevem este blog, sobretudo desse teutónico Bulhão Pato...
A Itália, logo a abrir, confrontou-se com um dos grupos mais difíceis, sobretudo quando se tornou óbvio que era necessário vencer a República Checa.
Depois, teve realmente a sorte do seu lado com a Austrália (bastante mais complicada do que poderia parecer à primeira vista) e com a Ucrânia.
Mas chegados às meias-finais, tiveram ainda que despachar a Alemanha, equipa anfitriã que até o caro Bulhão terá de admitir que foi claramente inferior à Itália.
E ainda a França, numa final muito mais difícil do que se poderia supor e onde a Itália, sem jogar muito, lá recuperou de um penalti inventado, enviou uma bola à barra e viu um golo limpo ser roubado...
O Mundial não foi bonito mas a melhor equipa foi sem dúvida a Campeã do Mundo!
A melhor defesa e o segundo melhor ataque! Não há muito mais a dizer...
E uma última palavra para os dois "interistas" do plantel italiano: Materazzi e Grosso. Sem eles, este título não seria azzurro!
O Grosso deve ser interista por afinidade...
Sancho, estares a comparar a arrogância da escrita do Bulhão Pato com a minha sobriedade e cultura analítica do fenómeno futebol só pode ser uma ofensa. de qualquer forma mando-te um abraço daqui do sol minhoto, mais propriamente dpo Bom Jesus, onde me vou deslocar para fazer um piquenique cujo menu é um muito saboroso arroz de p...
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